sábado, 21 de fevereiro de 2009

Dominó na Praça

Hoje é quinta. Não tenho calendário mas sei que é quinta. Sei porquê são 6:15 e a dona Julieta, vizinha da frente, acabou de sair pra passear com o seu maldito poodlezinho encardido e os trinta e dois cães da rua estão fazendo uma algazarra fenomenal. E aquela velha caduca promove este caos matinal rigorosamente às quintas-feiras. Opa, eu disse velha caduca? As vezes me esqueço que já faz 79 anos e 4 meses que estou por aqui. Mas caduco não sou. Pelo menos nunca me acusaram.

Bem, não importa. O que interessa é que desde que me aposentei, quinta-feira virou sinônimo de dominó, e isso me anima bastante. Gosto de encontrar o pessoal dos tempos de quartel na praça, disputar algumas partidas e rir das baboseiras declamadas a cada jogada por esses soldados enrugados.

Somos os Comandantes da Melhor Idade. Quem deu esse nome - muitíssimo contraditório em minha opinião - foi o Sargento Maneco, Manoel Figueira da Costa no RG. Digo contraditório pois confesso que já não comandamos muita coisa além de pedras de dominó, e a melhor idade, que na verdade fica entre os vinte e trinta anos, passamos com um fuzil nas mãos. O Maneco não gosta quando digo essas coisas. Apesar da perna que perdeu na guerra, sente muito orgulho de seu passado militar, ou pelo menos finge sentir. Como ele mesmo diz: "dei uma perna de presente à esta pátria manca cavalheiros!".

Fomos sargentos, tenentes, capitães, comandantes, mas de vez em quando eu penso que nós é que éramos os comandados. Não tivemos a opção mais digna e honrosa que um homem pode ter: a de escolher o próprio destino. Nosso caminho já estava trilhado. Das trincheiras até esta praça cheia de pombos sujos. Alguns chegaram sem a perna, como o Maneco, e alguns chegaram sem memória, sem história.

Na última quinta eu estava conversando com o Durval, que é primo do maneco, e apesar de não ser militar aposentado, já passou dos 75 e vem também matar o tempo com a turma. Contava-lhe sobre meu neto Luiz, que veio na semana passada todo eufórico me contar que iria fazer um tal de "mochilão". Levei uma meia hora pra entender o que era um mochilão, e mais meia hora pra explicar ao Durval, que logo reagiu contrariado: "vai deixar esse muleque por o pé no mundo assim? Virar vagabundo!?".
Pedi a ele que não falasse assim do Luiz, que procurasse entender os seus motivos. Depois de quase oito décadas vividas eu comecei a perceber que quando eu tinha meus dezoito anos e queria mudar o mundo, acabei escolhendo o caminho errado. Eu, Durval, e todos estes Comandantes de Dominó. Queriamos ajudar nosso país, nosso povo, e por isso fomos às armas.

Luiz tem também seu arsenal. Não enxergamos, talvez pela velhice, mas ele tem. E não está virando vagabundo não. Está lutando. Não parece mas está. Está fazendo a revolução.
Há um momento em que nosso destino é como aquelas fileiras de pedras de dominó em que empurramos a primeira, e não podemos mais interferir no restante. Se nos fosse permitido outra vida pra viver depois dessa eu pediria a Deus duas coisas: sabedoria ou boa intuição pra empurrar a primeira pedra no momento certo, e Dona Julieta com seu poodlezinho cretino, pra saber que é hoje é quinta-feira.