Hoje é quinta. Não tenho calendário mas sei que é quinta. Sei porquê são 6:15 e a dona Julieta, vizinha da frente, acabou de sair pra passear com o seu maldito poodlezinho encardido e os trinta e dois cães da rua estão fazendo uma algazarra fenomenal. E aquela velha caduca promove este caos matinal rigorosamente às quintas-feiras. Opa, eu disse velha caduca? As vezes me esqueço que já faz 79 anos e 4 meses que estou por aqui. Mas caduco não sou. Pelo menos nunca me acusaram.
Bem, não importa. O que interessa é que desde que me aposentei, quinta-feira virou sinônimo de dominó, e isso me anima bastante. Gosto de encontrar o pessoal dos tempos de quartel na praça, disputar algumas partidas e rir das baboseiras declamadas a cada jogada por esses soldados enrugados.
Somos os Comandantes da Melhor Idade. Quem deu esse nome - muitíssimo contraditório em minha opinião - foi o Sargento Maneco, Manoel Figueira da Costa no RG. Digo contraditório pois confesso que já não comandamos muita coisa além de pedras de dominó, e a melhor idade, que na verdade fica entre os vinte e trinta anos, passamos com um fuzil nas mãos. O Maneco não gosta quando digo essas coisas. Apesar da perna que perdeu na guerra, sente muito orgulho de seu passado militar, ou pelo menos finge sentir. Como ele mesmo diz: "dei uma perna de presente à esta pátria manca cavalheiros!".
Fomos sargentos, tenentes, capitães, comandantes, mas de vez em quando eu penso que nós é que éramos os comandados. Não tivemos a opção mais digna e honrosa que um homem pode ter: a de escolher o próprio destino. Nosso caminho já estava trilhado. Das trincheiras até esta praça cheia de pombos sujos. Alguns chegaram sem a perna, como o Maneco, e alguns chegaram sem memória, sem história.
Na última quinta eu estava conversando com o Durval, que é primo do maneco, e apesar de não ser militar aposentado, já passou dos 75 e vem também matar o tempo com a turma. Contava-lhe sobre meu neto Luiz, que veio na semana passada todo eufórico me contar que iria fazer um tal de "mochilão". Levei uma meia hora pra entender o que era um mochilão, e mais meia hora pra explicar ao Durval, que logo reagiu contrariado: "vai deixar esse muleque por o pé no mundo assim? Virar vagabundo!?".
Pedi a ele que não falasse assim do Luiz, que procurasse entender os seus motivos. Depois de quase oito décadas vividas eu comecei a perceber que quando eu tinha meus dezoito anos e queria mudar o mundo, acabei escolhendo o caminho errado. Eu, Durval, e todos estes Comandantes de Dominó. Queriamos ajudar nosso país, nosso povo, e por isso fomos às armas.
Luiz tem também seu arsenal. Não enxergamos, talvez pela velhice, mas ele tem. E não está virando vagabundo não. Está lutando. Não parece mas está. Está fazendo a revolução.
Há um momento em que nosso destino é como aquelas fileiras de pedras de dominó em que empurramos a primeira, e não podemos mais interferir no restante. Se nos fosse permitido outra vida pra viver depois dessa eu pediria a Deus duas coisas: sabedoria ou boa intuição pra empurrar a primeira pedra no momento certo, e Dona Julieta com seu poodlezinho cretino, pra saber que é hoje é quinta-feira.
sábado, 21 de fevereiro de 2009
Dominó na Praça
Postado por Lucas Ninno às 22:29
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4 comentários:
Hoje é domingo, e o teu jogo tá só começando.
Tenho muito orgulho do teu "arsenal".
Leva jeito, garoto. Leva muiiiiito jeito.
Tá chegando perto.
Continue escrevendo.
Ninno!!!
Adorei seu blog...
Muito gostoso de ler... vou add nos meus links, ok?
Kisses..
Lindo texto, Ninno. Credo! Como é estranho te chamar assim...
Acho que esse é um dos seus melhores textos, mas como esse está no topo da página, minha opinião pode mudar nos próximos textos.
Você me fez lembrar de uma sensação que senti a pouco tempo. O de tempo perdido. O de vida perdida. O de juventude perdida.
Ok! Não tenho setenta anos e minha vida não está chegando ao fim (eu acho...)Mas é que ultimamente tenho pensado que a gente traça o nosso destino bem cedo.
Parabéns por estar fazendo da sua vida aquilo que vc queria fazer quando te conheci. É um dos motivos pelo qual te admiro e invejo (no bom sentido).
Quando acho que não somos donos do nosso destino, lembro de você e vejo que sim, fazemos o que queremos e o que podemos, é claro.
Boa sorte! E se você escrever um livro, eu vou ler!
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