sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Ana


A paralisia das metrópoles é assustadora. Quase nada se move. Os arranha-céus estão ali eternamente ancorados como cânions, abismos, em cujos vales podem-se avistar pequenos pontos, os únicos em aparente movimento. Máquinas, obras faraônicas de engenharia, e humanóides, disputam o mesmo espaço. A vida escorre pelas veias da modernidade.

Esse era o único retrato que os olhos de Ana podiam conceber através da enorme janela da sala de estar. Um quadro embaçado e difuso, sem cores, imponente, frio. Quem sabe fosse um auto-retrato.

A sua história corria entre aquelas colinas cinzentas desde que saíra de sua cidade natal após a separação dos pais. Morava sozinha num grande apartamento de três quartos. Montou num deles sua mini-biblioteca, noutro um depósito de tralhas antigas e lembranças sem memória. O último e maior de todos era onde dormia. Havia uma pequena TV num canto do quarto, disposta em cima de uma caixa de papelão cheia de LPs que um dos tios lhe deu de presente e nunca ouviu. Não porque não tivesse vontade, mas porque não possuía um toca-discos e não fazia idéia de onde comprar um. No outro canto ficava a cama, muito estreita e feita com madeira barata. A parede onde estava encostada era forrada de figuras recortadas de cartazes, revistas, jornais, e tudo que dissesse respeito à sua banda favorita: a Legião Urbana.

Ana adorava Legião. Conheceu o grupo através de um amigo de escola que cantarolava “Eduardo e Mônica” pelos corredores sem parar. Ele lhe emprestou o cd “Dois” e ela ficou chocada com a precisão da descrição que uma das músicas, um blues, fazia da paisagem que via da janela da sala:

“Em cima dos telhados as antenas de TV
Tocam música urbana
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
Cantam música urbana
Motocicletas querendo atenção às três da manhã
É só música urbana

Os PMs armados e as tropas de choque, vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana

O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana
E a matilha de crianças sujas no meio da rua
Música urbana
E Nos pontos de ônibus estão todos ali, música urbana

Os uniformes,
Os cartazes,
Cinemas e os lares,
Favelas,
Coberturas,
Quase todos os lugares e mais uma criança nasceu
Não há mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana”

A música urbana estava impregnada na rotina e na mente. O labirinto de concreto, o pseudo-lar, a vida que se mostrava cinza na vista panorâmica, tudo estava longe, mas muito longe de ser um sonho, de ser a fantasia, de ser o carnaval. O mundo havia mostrado os dentes.
(Continua...)

4 comentários:

Lucas Ninno disse...

Comecei a escrever isso...sem objetivo, fui escrevendo...
Acho que vai sair uma história, não sei como chamar. Conto? História mesmo? Vou ver no que dá!

Anne M. Moor disse...

Quem sabe crônica?

Anne M. Moor disse...

Não sei se isso te ajuda mas aí vai:
CONTO – História completa e fechada como um ovo. É uma célula dramática, um só conflito, uma só ação. A narrativa passiva de ampliar-se não é conto.

A crônica é um gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, resultado da visão pessoal, particular, subjetiva do cronista ante um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano. É uma produção curta, apressada (geralmente o cronista escreve para o jornal alguns dias da semana, ou tem uma coluna diária), redigida numa linguagem descompromissada, coloquial, muito próxima do leitor. Quase sempre explora a humor; mas às vezes diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa – fiada.


http://www.asesbp.com.br/literatura/conto.htm

Anne M. Moor disse...

Lucas... 2007 te trouxe pra minha vida. Êta menino porreta!!! Que 2008 te inspire a continuar escrevendo e fazendo música.
Um beijo de ano novo bem grande procê
Anne