sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

É como um vaso que se quebra.

Não se sabe mais que forma tinha
Não se sabe o que dentro se continha

Não se sabe nem se vaso mesmo era
São cacos que varremos
Confundidos com as pedras

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O Homem Velho e seu Saco de Laranjas

O Homem Velho percorria os pomares em busca de laranjas. Punha cada uma que encontrava dentro de um enorme saco sem tamanho. E com o passar dos pomares o peso de tantas laranjas aumentava e aumentava e doíam-lhe as costas. O Homem Velho era incapaz de se desfazer. Não eram deveras boas laranjas. Tinham um gosto azedo, mas o cheiro bom. Fato interessante é que estas laranjas foram acometidas de uma estranha doença-de-laranjas que apodrecia as metades de cada uma. E o sempre mais velho Homem Velho continuava com suas laranjas boas ao meio, podres ao meio, até que um dia tropeçou em uma raiz. O saco se espatifou no chão. Rolaram laranjas por todos os lados. Ao erguer os olhos, viu a última, ainda corada e fresca e boa por inteiro, escorrer barranco abaixo, afundar lagoa adentro. Como não havia notado antes? Com aquela, poderia matar a fome, a sede, e aguentar mais e mais esquinas. Distração fatal.


O Homem Velho estava agora deitado sobre a terra. Em suas mãos apenas uma foto, de mulher.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Contemplados

No início de setembro, ao caminhar pelos corredores do Instituto de Linguagens - bloco onde tenho aulas no curso de jornalismo - notei em um dos murais um cartaz: "Concurso literário Sérgio Dalate". Me interessei e entrei no site indicado para maiores informações.

O concurso premiaria 10 contos e 20 poemas de alunos da UFMT. Resolvi arriscar com alguma coisa que já tinha feito aqui, no Sol na Laje. Já que nunca fui muito adepto aos poemas, enviei dois contos: "A Prece", e se não me engano, "Dominó na Praça".

Foi então que na semana passada, uma amiga veio me parabenizar pela internet. Pensei que havia errado a data do meu aniversário no orkut. Mas errado estava eu. "A Prece" - para minha surpresa, já que as linhas ocupam no máximo metade de uma página - foi um dos textos selecionados, e meu nome estava lá, na lista dos contemplados. Estranha essa palavra: "contemplado". Como premiação, os contos e poemas serão publicados em uma coletânea lançada pela Editora Universitária (EdUFMT) no início de 2010.

Ontem, na Casa Barão de Melgaço, prédio da Academia Matogrossense de Letras, participei do evento "Prata da Casa", que juntamente com o lançamento de vários livros da editora anunciaria os ganhadores do concurso. Fomos eu e minha mãe. Chegamos meio perdidos e sentamos em uma mesinha afastada destinada aos tais 'contemplados'. Acabamos por ser realmente contemplados com novos amigos: Nádia, estudante de medicina, que foi até lá representar a sua irmã Érica - também vencedora na categria de contos, Luciana - amiga da Nádia, e o Sr. Antônio Padilha, vencedor na categoria poema, que é ex-professor do curso de direito, pai da minha amiga Laura e de acordo com um dos autores publicados naquele dia, um ícone do curso de Geografia, do qual é aluno.

Parabéns a todos os 'contemplados', obrigado pela companhia de ontem, obrigado a todos os amigos, conhecidos e anônimos que gastam alguns minutos dos seus dias visitando o Sol na Laje. Obrigado ao Thiago Castor, que ilustrou o texto quando publiquei ele aqui no blog. E obrigado a minha mãe, que apesar de ser fera nas ciências exatas, me ensinou a ser mais humano.

Enfim, obrigado!


PS: Clique AQUI para ver a lista completa dos textos selecionados

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Um Retrato.


















Dessa vez eles se superaram. As flores amarelas forravam a calçada e um pedaço do asfalto, cobrindo os carros que estavam estacionados perto do meio fio. Os ipes, nesta tarde de domingo, pareciam buques gigantes! Como as melhores coisas da vida, eles aparecem nas épocas mais áridas e secas, só para encher nossos olhos e lembrar-nos que a beleza existe.

Nunca gostei de domingos, desde criança. Achava uma chatice acordar, almoçar, dormir vendo futebol e ir à missa obrigado no fim do dia. Tudo fechado, ninguém nas ruas, aquele marasmo de velho oeste. Mas esse foi diferente. O tempo passa e a gente vai descobrindo que essa história de simplicidade nao é lorota dos nossos avós. Parece besta: sair de tarde para tirar umas fotos no campus da universidade, lugar onde estou todo santo dia, onde penso que já vi tudo que tinha pra ver. Os ciclistas pedalandos suas bicicletas, as crianças soltando pipas, comendo pipoca e apontando os bichos no zoológico. A gente tirando fotos. Parece banal. Parece!

Mas essas coisas, aparentemente banais, sao como amores e ipes. Estao sempre ali, esperando que nossos olhos percebam, aguardando a chance de se eternizar em nosso retrato. Basta notar.

Se os domingos fossem sempre assim, eu trocaria a minha TV por um retrato de um ipe.


Foto de Cecília

(Obs: Estou sem o acento circunflexo!)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A Estação

Ele a viu. Era ela. No meio da multidão, assim mesmo, suados e enrugados pelo sol esturricante. Dois sorrisos apressados de segunda feira se acenaram, se reconheceram em meio a um segundo de caos no Terminal Central da cidade. A mistura de corpos e cabeças que se entrelaçavam nas plataformas logo engoliu aquela cena, que de tão fugaz pareceu-lhe uma miragem. Mas a memória não deixava dúvidas: depois de cinco longos anos, era ela.


A lembrança guardou a beleza como se guarda uma foto antiga, daquelas de papel. E a nostalgia ali se apoderava avassaladora, melancólica, bela. Junto, a vontade de voltar. Ser diferente, fazer diferente. O impacto daquele acontecimento, mesmo tão simples, o deixou grogue como um boxeador nocauteado. Passou o resto do dia cercado por aquele sorriso, aquela multidão e o oásis momentâneo do qual bebeu numa fração de tempo. Um tijolo azul no muro encardido da rotina.

E ficou pensando como é possível que hoje, na era dos bites e gigabites, da velocidade, da comunicação e da informação, pode passar 5 anos sem notícias. Algo deve estar errado. E é justamente daí que vêm os piores medos, os medos de sensação. A "sensação" de que há algo fora do lugar. E como não se sabe o que é, ou sequer se existe, ficam mãos atadas e olhos vendados, impossibilitados de corrigir, fazer diferente.

Assim, teve a impressão de que a realidade se engana, o futuro se confunde, "Os ventos erram a direção".

Porque ele a viu naquele dia. E tinha certeza. Era sim, era ela. Perdida no tempo, em meio a multidão.

domingo, 9 de agosto de 2009

O Vôo

Quando menino, soltei de propósito dois periquitos que tinha em uma gaiola.
É interessante a lógica do sentimento de uma criança. As vezes penso que elas são as mais sábias, e que essa sabedoria adormece com o passar dos anos.

Afinal, naquela época eu entendia a inutilidade de uma ave enjaulada.
Eu só ainda não sabia dizer que a verdadeira beleza do pássaro, é o vôo.


segunda-feira, 30 de março de 2009

A Prece



. . O fio incandescente de tungstênio mal permite que se notem os rostos. Lampadinhas emitem uma espécie de meia luz feia, murcha, pobre. Faz muito calor. Calor úmido que com o tempo cozinhou a pintura ordinária da parede, abriu-a como uma cortina, revelando o reboco mofado. Ventiladores barulhentos no teto sopram ar quente na freguesia. São homens exaustos, pálidos, tristes. Pecadores chorosos e arrependidos, como que de joelhos, em prece, diante da única santa capaz de anestesiar os sentidos, atenuar a dor.

Misericordiosa Cachaça.

O balcão, o balconista bigodudo, a alquimia alcoólica engarrafada nas prateleiras. Uma farmácia onde a cada copo, quando os deuses já não ouvem, não vêem e não mandam sinais, a vida vai sendo remediada.

No fim da semana

no fim do mês

no fim.




Agradecimentos a Thiago Castor, que ilustrou essa postagem. É muito bacana ver um texto meu sendo interpretado através do seu traço!
Agradecimentos também a todos que visitam esse blog. Voltem sempre!

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sinestesia

Quero meus 5 sentidos à todo vapor.

O horizonte,
O perfume
O som
O beijo
o sabor

domingo, 15 de março de 2009



"Música"

"Mú...si...ca"

Como pode caber tanta coisa coisa dentro de uma palavra?

A Gota




Sempre quando chove, gosto de ir pra varanda pensar em qualquer coisa. Vejo as gotas despencando das telhas até o rápido mergulho na poça de água.

Aí então matuto com meus botões: A gota d'água nasce das nuvens, e só existe enquanto voa, até cair na poça, onde já não é mais gota.

E as vezes eu acho isso tudo muito parecido com a vida.




Obs: Escrevi esse texto em março e só hoje fui encontrá-lo perdido aqui nos arquivos do blog. Nem me lembrava mais!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Dominó na Praça

Hoje é quinta. Não tenho calendário mas sei que é quinta. Sei porquê são 6:15 e a dona Julieta, vizinha da frente, acabou de sair pra passear com o seu maldito poodlezinho encardido e os trinta e dois cães da rua estão fazendo uma algazarra fenomenal. E aquela velha caduca promove este caos matinal rigorosamente às quintas-feiras. Opa, eu disse velha caduca? As vezes me esqueço que já faz 79 anos e 4 meses que estou por aqui. Mas caduco não sou. Pelo menos nunca me acusaram.

Bem, não importa. O que interessa é que desde que me aposentei, quinta-feira virou sinônimo de dominó, e isso me anima bastante. Gosto de encontrar o pessoal dos tempos de quartel na praça, disputar algumas partidas e rir das baboseiras declamadas a cada jogada por esses soldados enrugados.

Somos os Comandantes da Melhor Idade. Quem deu esse nome - muitíssimo contraditório em minha opinião - foi o Sargento Maneco, Manoel Figueira da Costa no RG. Digo contraditório pois confesso que já não comandamos muita coisa além de pedras de dominó, e a melhor idade, que na verdade fica entre os vinte e trinta anos, passamos com um fuzil nas mãos. O Maneco não gosta quando digo essas coisas. Apesar da perna que perdeu na guerra, sente muito orgulho de seu passado militar, ou pelo menos finge sentir. Como ele mesmo diz: "dei uma perna de presente à esta pátria manca cavalheiros!".

Fomos sargentos, tenentes, capitães, comandantes, mas de vez em quando eu penso que nós é que éramos os comandados. Não tivemos a opção mais digna e honrosa que um homem pode ter: a de escolher o próprio destino. Nosso caminho já estava trilhado. Das trincheiras até esta praça cheia de pombos sujos. Alguns chegaram sem a perna, como o Maneco, e alguns chegaram sem memória, sem história.

Na última quinta eu estava conversando com o Durval, que é primo do maneco, e apesar de não ser militar aposentado, já passou dos 75 e vem também matar o tempo com a turma. Contava-lhe sobre meu neto Luiz, que veio na semana passada todo eufórico me contar que iria fazer um tal de "mochilão". Levei uma meia hora pra entender o que era um mochilão, e mais meia hora pra explicar ao Durval, que logo reagiu contrariado: "vai deixar esse muleque por o pé no mundo assim? Virar vagabundo!?".
Pedi a ele que não falasse assim do Luiz, que procurasse entender os seus motivos. Depois de quase oito décadas vividas eu comecei a perceber que quando eu tinha meus dezoito anos e queria mudar o mundo, acabei escolhendo o caminho errado. Eu, Durval, e todos estes Comandantes de Dominó. Queriamos ajudar nosso país, nosso povo, e por isso fomos às armas.

Luiz tem também seu arsenal. Não enxergamos, talvez pela velhice, mas ele tem. E não está virando vagabundo não. Está lutando. Não parece mas está. Está fazendo a revolução.
Há um momento em que nosso destino é como aquelas fileiras de pedras de dominó em que empurramos a primeira, e não podemos mais interferir no restante. Se nos fosse permitido outra vida pra viver depois dessa eu pediria a Deus duas coisas: sabedoria ou boa intuição pra empurrar a primeira pedra no momento certo, e Dona Julieta com seu poodlezinho cretino, pra saber que é hoje é quinta-feira.